segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Criança, menina, mulher e negra



Menina ainda, pequena, criança, negra
Não entendia porque sua cor a diferenciaria
E na escola chorava porque a sua professora,
não a beijava, nem a abraçava.
Estranha e dolorosa descoberta, porque a mesma professora
beijava, elogiava e abraçava suas amiguinhas
pequenas, crianças, brancas...

Dor, dor, dor
Uma dor que não compreendia
Não conseguia se defender...
E perguntava pra sua mãe o que tinha que fazer pra ficar branca
E então conseguir o amor de tanta gente
amigos, professora, até parente.
E ficava triste porque ninguém queria brincar com a boneca que tinha a sua cor
E aquelas princesas eram todas brancas, loiras e de olhos azuis
Ela queria ser como elas e também como aquelas moças da TV
Cadê as apresentadoras negras? Cadê?
Assim ia aprendendo que o belo, ao qual todos gostavam, não tinha nada a ver com ela...
Não se identificava, chorava...

Maior um pouco, já no ensino fundamental
Ouviu certa vez, numa aula, de uma certa professora
Que a cor preta representava o pecado, as coisas ruins...
Nessa mesma escola, teve que engolir a raiva
quando outro professor, por puro preconceito, degradou sua religião, a umbanda...
E pensava: será que tudo que diz respeito a mim não presta?

Como é que se constrói um ser humano desse jeito?

Entre colegas, mais sofrimento, brigas entre as meninas, acontece...
Mas ouviu de uma delas: “sua neguinha, se enxerga, olha pra você e olha pra mim, quem é que vai levar a melhor na vida, hein?”
Revolta dobrada quando ao relatar a situação para a coordenação, ouviu: “não liga pra ela não, fica quieta e evita confusão”...
A aprendizagem da submissão é cruel, e é ressaltada quando há conivência
E a sociedade reclama da violência...

O sofrimento continuou no ensino médio, quando ao ser transferida pra uma escola particular “bacana”, descobriu-se a única negra do lugar
Era olhada de cima a baixo por colegas e certos professores
E aprendeu muito cedo que teria que provar a todos que estar ali era mérito seu
Ela era boa, era mulher e negra, mas era boa...
Conheceu um rapaz e se apaixonou, mas a família dele não a aceitou: “onde já se viu namorar uma moça negra, meu filho? Não é a gente não, pensa bem, são os outros, meu bem...”
E tão logo passou por uma desilusão amorosa...
a essa altura, ela mesma já se achava feia e não merecedora do amor de ninguém
E ainda ouvia na escola que vivemos em uma democracia racial...


Entre altos e baixos, mulher feita já
Enfrentou o preconceito no mercado de trabalho
Sua aparência não era bem à que as empresas queriam, apesar da sua formação
E quando enfim, conseguiu um emprego, descobriu que como mulher seu salário era bem menor
E que como negra, sua posição também era menor
Revolta novamente ao descobrir as estatísticas e ao deparar-se com gente que não sente na pele literalmente todo esse preconceito e fala mal das cotas para negros
Ela mesma começou a pensar nas companheiras de negritude que não tiveram a mesma chance que ela, que não fizeram um ensino médio como o dela, numa escola “bacana”, que chance teriam?
Como concorreriam? Não, isso tudo é muito desleal.
Essa mulher defendia as ações afirmativas, as mulheres, as pessoas negras onde que ela fosse.

Mas um dia chegou em casa e viu uma movimentação estranha...
Muita gente na frente de casa, seu coração gelou na hora...
Vieram em sua direção e pediram para que tivesse calma, que ela teria que ser forte...
“O que foi que aconteceu? Foi meu filho?”
“Nãaaaaaao!!!!!!!!”
E agora apenas choro e desespero.
Seu filho fora assassinado por policiais, confundido com um ladrão...
Sabe como é, negro nesse país...

E desacreditada da justiça
Cansada de violência
revivendo um filme que passava em sua cabeça...
revivendo tudo o que sofreu na infância e juventude...
Não aguentou...
E se suicidou.

Edna Telles



Fonte da imagem: http://cristianesobral.blogspot.com.br/2012/09/a-gente-so-pode-ser-aquilo-que-e-conto.html